);

Agora não se pode obrigar uma criança a dar um beijinho à avóQue mundo é este?!”

Vi vários comentários como este e outros parecidos nos últimos dias. Entendo que se possa ficar perplexo, e sei que pode ser difícil entender a ligação entre obrigar uma criança a dar um beijo à avó e abusos sexuais.

Quando passamos mensagens às crianças sobre sexualidade e consentimento, o direito à decisão sobre o próprio corpo é fundamental, tal como tambéé fundamental o direito que o outro tem sobre o seu corpo. E isto o são estudos de que alguém se lembrou agora, é um tema sério e estudado há muito tempo. Quando “modernices” como estas interferem com hábitos da nossa cultura ou, mais complicado ainda, quando falamos sobre osperigos de um hábito relacionado com os nossos filhos, tendemos a assumir uma de duas reações: ou começamos por nos sentir culpados, deixando que o nosso comentador interno nos acuse de sermos maus pais, de não sabermos direcionar convenientemente os nossos filhos e ficamos paralisados com essa culpa, ou, em alternativa, começamos a defender aquilo que estamos a fazer e soltamos o comentador externo e grande defensor do ego, ridicularizando e atacando quem nos está a propor uma coisa nova e diferente daquela à qual estamos habituados.

Porém, existe uma terceira via, aquela onde por uns instantes assumimos a perspetiva do outro, sabendo que a nossa perspetiva é necessariamente a certa (e que até podemos ficar a ganhar com uma perspetiva diferente). Assumir a perspetiva do outro é uma capacidade que podemos treinar e desenvolver, caso não tenhamos sido ensinados a fazê-lo enquanto crianças. Infelizmente, uma parte significativa e privilegiada da humanidade foi ensinada a achar que a sua perspetiva é a perspetiva correta, e essa programação interna impede que as pessoas entendam a importância de realmente se colocarem no lugar do outro.

Há uns meses tive um “reality check” bastante forte. Um pouco por acaso encontrei um mini curso online sobre supremacia branca. E não estamos a falar de neo-nazis, era um curso para pessoas como eu, mulher, branca, do ocidente, e esse cursoconvidou-me a olhar para o meu privilégio e perceber como eu, sem querer, contribuo para a supremacia branca. Doeu. Ai, se doeu. Eu que luto contra o racismo. Eu que tenho amigos de vários cantos do mundo. Eu que sou respeitadora.

Uma das coisas mais importantes que aprendi com o curso foi esta: quando alguém te diz que tens e vives um privilégio, quando alguém te diz que se senteoprimido (por ti), em vez de começaresimediatamente a defender-te, em vez de dizeres que o outro se está a vitimizar, que está a exagerar, ouve e procura entender. É provável que descubras muitas coisas novas. E foi claramente o que me aconteceu. Houve momentos nos quais foi difícil resistir ao impulso da defesa… mas com as coisas novas que aprendi, sobre mim e sobre o outro, agora procuro mudar e ser uma pessoa melhor, todos os dias. As aprendizagens, só foram possíveis porque tomei a decisão consciente de não me defender, de ouvir e de procurar entender, e tenho a intenção de levar este lema comigoe aplicá-lo noutrasituações, inclusivamente situações nas quais sinto que estou no lugar do não-privilegiado ou quando estou com vontade de defender quem não tem privilégio (como as crianças,por exemplo). Imagina se nas caixas de comentários das redes sociais mais pessoas levassem consigo esta ideia: “Não te defendas. Ouve e procura entender.” Admito que nem sempre consigo. Há alturas em que começo a deitar fumo e tenho de respirar muito, muito fundo. Mas tento focar-me nintenção de não me defender, de ouvir e procurar entender, para depois encontrar uma forma respeitadora de também fazer passar a minha mensagem. Na prática poderia começar assim:

José: “Agora não se pode obrigar uma criança a dar um beijinho à avóQue mundo é este?!

Está tudo parvo!”

Mia: “Queres contar-me mais sobre os teus receios e sobre o que pensas para eu poder entender melhor a tua perspetiva?”

Ou

Mia: “É extremamente importante respeitar os limites físicos e emocionais de uma criança. Se ela não quiser dar um beijinho, não a devemos obrigar.”

José: “Estou a ter dificuldade em entender o teu ponto de vista, podes explicar-memelhor a tua visão?”

Para isto funcionar e poder ser uma realidade, é imprescindívelsermos pessoas curiosas, pessoas dispostas a colocar-se no lugar do aprendiz e a abdicar do trono do dono da razão. Temos queestar abertos a ouvir os outros, principalmente os que indiscutivelmente sabem mais que nós sobre determinado tema, tendo a capacidade de reavaliar as nossas posições e opiniões, sem medo, sem vergonha e com empatia e coragem.

Eu não obrigo nem nunca obriguei os meus filhos a darembeijinhos a ninguém. Vinda de uma cultura nórdica é um pouco mais simples pois, por lá, o beijinho é um cumprimento habitual. Entendo que para alguns pais portugueses possa ser difícil lidar com uma situação em que o filho não quer fazer o cumprimento convencional, até porque é só o filho que é preciso gerir nestes momentos mas também o nosso constrangimento, a nossa vergonha, e, muitas vezes, a reação da outra pessoa adulta. Porém, quando acontece, convém não esquecermos que nós, adultos, devemos assumir responsabilidade pelas nossas próprias emoções, ou seja, se a avó ficou tristeporque o neto não quis dar-lhe um beijinho tem aí uma bela oportunidade para fazer algum trabalho de desenvolvimento pessoal, tal comoeu, caso fique incomodada com este tipo de situações.

De qualquer modo, vivemos em Portugal, eu e os meus filhos, que são meio portugueses. Já foram muitas as vezes em que ouvi o apelo “dá-me um beijinho!”, uma frase normal aqui, nada normal em tantos outros países. Voltando ao facto de nunca os ter obrigado a dar beijinhos: hoje com 14, 10 e 8 anos, os meus filhos sabem perfeitamente a forma como é costume cumprimentarem osavós, os tios, os amigos e outras pessoas na sociedade portuguesa e fazem isso educadamente, confortavelmente e de coração, não por obrigação, medo de repreensão ou por recearem que alguém deixe de gostar deles. E isso, para mim, basta. Não quero dar beijinhos quando não estou confortável com a pessoa em questão, nem quero receber beijinhos de alguém que está com vontade de me dar beijinhos, simples assim. Nem preciso de falar sobre como quero capacitar os meus filhos para conseguirem demonstrar os seus limites pessoais e respeitar os limites pessoais dos outros. Naturalmente, não os forçar a afetos indesejados que os façamsentir-se desconfortáveis faz parte desse processo. A verdade é que essas competências são absolutamente fundamentais quando estamos a abordar temáticas como abusos sexuais, violência no namoro e tantas outras que estão em falta extrema na nossa sociedade.

Quero finalizar contado uma pequena história:

Há uns anos a minha filha tinha uma amiga com quem brincava muito. Essa amiga tem um irmão mais novo, da mesma idade que o meu filho do meio, e um dia combinámos que iriam brincar paracasa desses amigos. Quando chegámos a casa deles, a mãe dos miúdos cumprimentou a minha filha com dois beijinhos e aproximou-se do meu filho para fazer o mesmo… mas ele não estava nada àvontade. Apercebendo-se disso rapidamente, a mãe não forçou, e em vez de insistir nos beijos, ofereceu-lhe o seu dedo mindinho. Foi muito curioso, porque o encaixe dos dedos mindinhos surgiu naturalmente como um cumprimento alternativo e passou a ser, durante meses, o cumprimento habitual entre os dois: mindinho com mindinho. Depois do verão, após algum tempo sem nos vermos, voltámos a casa desses nossos amigos para um belo reencontro, e qual foi o nosso espanto quando o meu filho se aproximou da Luísa e lhe ofereceu dois beijinhos sem ninguém lhe dizer nada.

Obrigada Luísa! Que todos possamos ter a tua lucidez e a tuacriatividade.

Nota: consigo prever alguns comentários desagradáveis, irónicos ou até mesmoagressivos a este texto. Se queres comentar por não estares de acordo com o que acabei de partilhar, be my guest! Peço apenas que partilhes opiniões informadas e respeitadoras para que consigamos trocar ideias de forma produtiva, aprendendo com perspetivas diferentes da nossa e contribuindo para uma sociedade onde exista o igual valor e o respeito, em vez de nos limitarmos a propagar a intolerância. Obrigada!

Texto publicado nas Capazes

X