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Nestes últimos tempos tenho pensado e refletido mais do que nunca sobre uma coisa. Algo que já tinha identificado como um fenómeno que não gostava, nem em mim, nem nos outros. A minha verdadeira tomada de consciência sobre isto não foi há assim tanto tempo. E foi uma tomada de consciência dura. Eu quero muito ter razão. Nos últimos 10 anos tenho estado muito atenta à este desejo, desde que ouvi, acho que foi o Dr Phil a perguntar uma convidada no programa dele ”Queres ter razão ou queres ser feliz?”. (Algo caricato pois acho que o próprio Dr Phil se esquece de fazer esta pergunta muitas vezes. Tal como eu.) As palavras ficaram gravadas em mim e tenho utilizado a pergunta inúmeras vezes.

Parece-me que a luta para ter razão é algo que supera, e muito, o trabalho investido na própria felicidade ou a contribuição para um mundo melhor e mais justo.

Claro que, quando penso nesta tendência e a ligo ao meu trabalho, consigo ver algumas coisas que acredito serem explicações válidas para o estado em que se encontra a nossa sociedade e o facto de estarmos a colocar a sustentabilidade social em risco.

Como foram os teus anos de escolaridade? Deixa-me adivinhar, foste premiado quando deste as respostas certas, quando tiveste o resultado certo? E foste castigado, talvez ridicularizado quando deste as respostas erradas? Quem não viveu isso na escola, viveu uma exepção (e ainda bem!). Acredito também que em outras áreas da tua infância, talvez também na tua família a forma como foste educado incluiu reconhecimento e elogios quando fizeste o ”certo” e vergonha e castigos quando fizeste o ”errado”. Na minha infância certamente foi assim. Lembro-me tão bem de uma frase que o meu pai nos dizia, a mim e a minha irmã, quando ele nos queria reprimir ”Deverias ter vergonha!”. E a minha infância foi isenta de violência física. E com muito, muito amor e carinho no meio. Mas essa frase, ficou.

Ficou tanto que no início da minha maternidade, a minha filha também já ouvi as mesmas palavras que o meu pai me disse. ”Deverias ter vergonha!”. E naquele momento eu não conectava com a forma como aquela frase echoava em mim na infância. Mas agora, anos mais tarde e com uma grande tomada de consciência, arrepio-me quando penso no que disse. E mesmo tendo mudado completamente a minha forma de educar pouco tempo depois, consigo ver as consequências.

A forma como educamos hoje em dia continua a ser através das principais ferramentas de manipulação… retiramos e demonstramos amor através dos julgamentos, das ameaças, dos castigos, dos elogios, dos prémios e das recompensas. Se as crianças não fazem o que nos achamos certo, são más, feias e deveriam ter vergonha. E a vergonha alimenta-se da autoestima e o que toma o seu lugar é a autorejeição. As crianças só querem pertencer, e como para imensos animais, ser excluído do grupo significa que não vamos sobreviver.

E é por isso que as ferramentas de manipulação funcionam tão bem, pois jogam com o medo de abandono, o medo de ser rejeitado e não poder pertencer. Mas a custa de que? A custa de uma autoestima enfraquecida e um medo instalado que comandarão o resto da vida numa busca incessante de ser amado e aprovado pelos outros. Uma necessidade de ser ”bom”, de fazer as coisas ”certas”, de pertencer ao grupo ”certo” e de ter razão. E por uns momentos, enquanto tenho estas confirmações externas de que estou certo, sinto-me bem, a autorejeição está minimamente controlada e pareço autoconfiante (e a autoestima por uns instantes é esquecida).

Pessoas que têm uma autoestima fraca e que têm a autorejeição muito ativada são fáceis de manipular. Se encontrares uma forma de satisfazer a necessidade de se sentirem aprovadas, aceites e amadas através do que queres que elas façam… já está. Estas pessoas muitas vezes também são excelentes bullies. Julgam, rejeitam, ridicularizam e são violentas contra outras pessoas. A demonstração da ”superioridade” compensa a autoestima e a rejeição e ridicularização do outro faz com que se sintam melhor em relação a si mesmos. Sentem-se bem porque estão certos e o outro é mau, fez algo errado, tem a opinião errada etc.

A proposta da parentalidade consciente é deixar ir a ideia que devemos educar através das ferramentas de manipulação. Mas quando não podemos dar e retirar amor para educar (controlar/manipular) as crianças, quando não queremos punir, envergonhar ou premiar, o que resta? Muitas pessoas demonstram um grande medo das consequências de uma educação que não pressupõe estas ferramentas. Acham que se vai entrar na permissividade, que as crianças vão ficar selvagens, que a desordem e o desrespeito vão reinar. Mas não é bem assim.

Uma ideia central é perceber a diferença entre o desejo e a necessidade e o poder punitivo e o poder protetor que os pais detêm com o seu lugar na relação pais-filhos. Todos temos muitos desejos, que podem ser preenchidos ou não. A não satisfação das necessidades, no entanto, pode ter consequências menos boas. Por exemplo, a criança pode ter o desejo de ficar a jogar Fortnite a noite toda, mas tem uma necessidade fisiológica de dormir. Não jogar Fortnite não têm nenuma consequência grave para a criança, não dormir pode ter. E a forma como eu usar o meu poder como o adulto na situação pode ou não criar consequências não desejadas.

Para a criança não ficar a jogar Fortnite a noite toda e para ela se ir deitar, não precisamos de ameaçar, envergonhar ou castigar. Não precisamos de desrespeitar ou ridicularizar o seu desejo. Nem precisamos de chantagear ou premiar se ela deixar de jogar e se for deitar. A alternativa, requer um pouco mais de consciência, mas não demora mais tempo. A primeira ferramenta resume se na prática do igual valor, do respeito pela integridade, da autenticidade e da responsabilidade pessoal integrado num diálogo com a criança.

Uma conversa recente aqui em casa:

Eu: Viste as horas?
Filho: Não, que horas são?
Eu: São 21.45. Faltam 15 minutos para irmos para a cama.
Filho: Mas eu quero jogar mais! Não quero dormir, não tenho sono!
Eu: Pois, já percebi. Claro que não queres dormir, adoras esse jogo.
Filho: É muito fixe!
Eu: É fixe especificamente porque? Admito que tenho alguma dificuldade em entender.

A criança explica o porque de gostar do jogo enquanto fico a observar o que está a acontecer. Conversamos mais um pouco sobre o jogo e fico ao seu lado.

Eu: Ah, ok, acho que já percebi melhor. Obrigada. E então, como é? São quase 9.
Filho: Vou só acabar este jogo e já vou.
Eu: Quanto tempo mais demora?
Filho: Não sei bem, depende, mas menos de 10 minutos acho.
Eu: Ok. Vou tratar de algumas coisas enquanto acabas.

(O jogo acaba passado 8 minutos)

Filho: Mamã, vamos?

Ao ler isto muitas pessoas vão dizer ”E se ele não…?!”. ”E se…” é a principal razão porque muitas pessoas nunca chegam a experimentar as propostas da parentalidade consciente. Depois há quem experimenta e diz que não funciona. E normalmente consigo adivinhar porque não funcionou, foi porque quem introduziu o diálogo fê-lo com a intenção de conseguir a obediência da criança o mais rapidamente possível, e não com a intenção da prática do igual valor, do respeito pela integridade, da autenticidade e da responsabilidade pessoal. Depois há quem experimenta e se espanta com o quão fácil pode ser. E aqui por casa, as situações são resolvidas com diálogos parecidos com este. As crianças seguem a liderança dos pais sem gritos, sem ameaças, sem chantagens, sem prémios. Há dias em que empancamos. Quando eu empanco a minha estratégia principal são as ameaças. Mas mal tome consciência de que não só não estão alinhadas com as minhas intenções, como também não funcionam, volto para a minha ferramenta número 1, o diálogo. E, acabamos por resolver tudo da mesma forma de sempre, apesar do desvio. E está tudo bem.

A segunda ferramenta são as consequências naturais. A vida está cheia de consequências naturais e não precisamos de fabricar consequências.

Por exemplo, os meus filhos foram sempre muito calorentos. O mais novo adorava andar de Croques. E um dia quando se estava a aproximar o outono, estava a chover e ao meu ver não era muito adequado ir de Croques, mas ele quis ir de Croques. Disse-lhe: ”Olha, é bem provável que molhes os pés e que fiques com frio. Que tal antes calçar as galochas ou os outros sapatos?” O menino insistiu nos Croques, eu aceitei, informando que vinha prevenida com meias e sapatilhas no meu saco. ”Não é preciso!” exclamava ele. ”Eu sei, é só para eu me sentir uma melhor mãe.” respondi com um sorriso.

O que aconteceu foi que o pequeno molhou os pés. E como ele é muito sensível dos pés, sentiu desconforto. Sem cobrar o facto de eu ter tido ”razão”, simplesmente perguntei se ele queria as meias e sapatilhas e ele aceitou. Fim da história (ah, e não ficou doente). Mas vamos explorar as aprendizagens, que são nomeadamente duas. Primeiro, aprendeu que Croques podem não ser um calçado adequado para todas as alturas do ano, são desconfortáveis em algumas alturas, desconfortáveis em outras. Segundo, teve uma confirmação de que a Mãe até sabe algumas coisas e pode ser boa ideia ouvir os seus conselhos.

Se eu tivesse insistido com o meu filho: ”Tens de usar outros sapatos! Não podes usar Croques com este tempo! Se não calçares os outros sapatos não vamos ao parque!” Ou imagina que lhe tivesse dado uma palmada para ele me obedecer. Ele não tinha aprendido que Croques naquele tempo são desconfortáveis, tinha aprendido que a relação comigo é desconfortável. E se no futuro tivesse fugido com os Croques, mesmo com o piso molhado e não tivesse sentido desconforto, aprendia que os meus conselhos não são assim tão bons. E se as consequências fossem todas fabricadas em forma de castigos e palmadas ele aprendia que ”quanto menos os meus pais souberem, melhor para mim.” E assim criamos a ideia de que ”se não me apanharem, não há consequências” (algo que se poderá tornar bem mais extremo e perigoso na adolescência). Em vez de treinar as crianças a assumirem responsabilidade pessoal pelas suas escolhas.

Claro que, existem consequências naturais que não podemos deixar os nossos filhos viver, garanto que são poucas. Resumem se basicamente em consequências que poderão significar morte ou ferimentos graves da criança ou outra pessoa. Ficar sem comer a sopa ou andar alguns minutos sem casaco ao frio, não pertencem a este grupo.

Quando deixamos as crianças assumir responsabilidade pessoal estamos a comunicar que confiamos nelas. ”Confio que consigas subir a arvore, confio que consigas assumir responsabilidade pela tua roupa e pelo teu trabalho escolar, confio que vais comer quando tens fome e vestir um casaco quando tens frio, confio que consigas escolher os teus amigos.” E quando nós pais assumimos responsabilidade que deveria ser uma responsabilidade dos nossos filhos, estamos a passar a mensagem que não podemos confiar neles. E essa falta de confiança, alimenta a autorejeição e destrói a autoestima. E o ciclo continua.

A pratica da parentalidade consciente ajuda-nos a reconstruir a nossa autoestima e a sarar a ferida da autorejeição. E nesse processo o nosso amor-próprio também cresce, a nossa vontade de agradar os outros diminui, a nossa necessidade da aprovação dos outros também. Torna-se mais fácil comunicarmos os nossos limites, demonstrarmos quem somos e ganhamos coragem de ser autênticos e vulneráveis. Deixar ir o desejo de ter razão nem sempre é fácil. Pois, é mesmo um desejo e não uma necessidade, não preciso de ter razão. A necessidade que tenho é o reconhecimento, e posso dar esse reconhecimento a mim mesmo.

Para mim, começou pela pergunta ”Queres ter razão ou queres ser feliz!”. E claro que quero ser feliz, mas a autorejeição e a autoestima em desenvolvimento até faz com que me apanhe a querer ter razão em relação à parentalidade consciente e a querer ter razão em relação a não precisar de ter razão. Mas é isto que me faz mover, esta tomada de consciência que me tem permitido viver mais e melhor a minha intenção de contribuir para uma vida em paz; em mim, na minha família e no mundo.

Mia

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